terça-feira, 10 de junho de 2014

Sobre Gravando, da Aline Rocha

Esses dias, fui a São Paulo fazer várias coisas burocráticas chatas e de repente eu estava num bar e de repente eu estava já em outro bar e de repente eu estava andando na Paulista de madrugada com uma mochila enorme nas costas e de repente eu estava no karaokê, nostálgica do lugar da onde eu tinha acabado de sair, e de repente eu estava na rua, sozinha, às 4 da manhã, sem ter um lugar pra ficar. Minha experiência morando em SP, apesar de tantos momentos felizes, foi a de um abandono quintessencial. Talvez porque a minha primeira vizinha tenha dito que eu era uma “filha sem mãe” e suspeitava que eu tinha cagado no capacho dela (ainda consigo me lembrar da sua voz dizendo “isso é cocô humano”, enquanto eu tentava colocar algum juízo na cabeça dela); ou então porque minha segunda vizinha tenha me denunciado para a síndica por solicitação; ou porque eu nunca consegui assimilar realmente a experiência que eu estava tendo, finalmente conhecendo o mundo de verdade. São Paulo, pra mim, é um monstro do bem, tipo aqueles do “Where the wild things are”. Mau hálito, barango, assustador, sem limites, divertido. (Ou, para usar a definição de Leandro Rafael Perez, "O pó que nos une é bem mais o da poeira do que o da morte, tu sabe, tudo são monstros" [PEREZ, Leandro Rafael. "Uma leitura levemente acompanhada". Posfácio a PIEROTTI, Marcelo. Domingo no Matadouro. São Paulo: Editora Patuá, 2013.]. De repente, o que assusta é essa intimidade forçada do metrô lotado de encoxadores, que demonstra que todos somos feitos da mesma matéria. Ou ler na plaquinha do ônibus que a lotação máxima são 13 pessoas sentadas e 30 em pé. Aham, com certeza.)

Talvez não seja esta a proposta principal de Gravando, de Aline Rocha, mas seus poemas capturam essa essência paulistana. Note-se a alegria pueril de “About”,

da chuva que cai e não sabemos
da bomba-relógio circular
do drops ardendo a garganta
das voltas que o mundo dá
da billie rouca no ipod
da máquina de refrigerante

formado de versos eneassílabos, imitando as rimas que ensinamos para as crianças. A chuva, o drops (jovem guarda?), a máquina de refrigerante, etc. formam um conjunto harmônico e fofinho – carismático, eu diria – só para romper-se no final. O poema, sem sermão, nos deixa sozinhos, como uma mãe que embala o filho e o entrega pra assistente social, despedindo-se com alguma fórmula batida, tipo “preciso cuidar de mim para poder cuidar de você”. Os dois últimos versos são “de dentro do vagão me despeço/de você na escada rolante”. Adeus, é isso. O poema acaba porque não há possibilidade de reconciliação: o metrô foi embora, nem consigo te ver se afastando no meio de tantas pessoas, mas imagino você subindo pela escada rolante (infinita) cheia de gente a qualquer hora do dia. São Paulo, tem que ser São Paulo, essa mãe sem dó no coração, que no entanto é a única pessoa que te ama de verdade. Só em SP, cai a chuva e você nem sabe, porque experimenta a cidade com os fones de ouvido enterrados nos canais auriculares, ali mesmo mas alheio a tudo que se passa, só interagindo com o absolutamente essencial. SP: bomba relógio circular (como a radial leste e a radial oeste, como as marginais que imprensam a cidade pra dentro do ovo de onde nasceu, como o rio Tietê, retificado à toa, mostrando os limites civilizatórios, o nosso celebrado Rubicão). E sei lá, Aline, de repente você nem teve a intenção, mas esse poema são os amantes que deixamos na estação – antes de termos o celular roubado e perdermos o número deles para sempre. São “as voltas que o mundo dá”, num dia do seu lado, noutro dia completamente indiscernível da multidão. Essa estranha certeza de que nunca vamos nos ver de novo.

SP é também aquela cidade que é tão-grande. Contemplar o seu tamanho – talvez nem tanto o tamanho físico, mas a pretensão, a ambição, o rápido amadurecimento relativo, a população crescente de leões-por-dia, sabe o que é que eu tô falando? Olhar pra isso é quase imediatamente sufocar. É tanto que não dá nem pra reter na memória, como a ansiedade da sua “arquivística” em reter o que leu na semana passada. Gravando é também sobre essas leituras para sempre perdidas, impossíveis de serem recobradas num universo prolífico de símbolos.

Rasgar a página do livro recortar a notícia do jornal
e guardar a posteridade pede notícias que nunca darei
e acreditará em tantas outras notícias que não foram guardadas
(“Rasgando”)

Talvez seja a primeira função da escrita: permanecer. Se permanecer é significar, este eu-lírico está ansiando para que a sua experiência, entre os jornais e as notícias, faça algum sentido, por isso age febrilmente, rasgando e recortando, na esperança de singularizar um momento. (Lembrei do eu-lírico do Rubén Darío, em "Autumnal", pedindo para a fada/musa sempre “Más...” “Más...”, uma angústia pela experiência, pela inspiração). Mas, ainda é SP… Aquela sensação bem distinta de andar entre o exército de executivos da Paulista e caminhar cantando Whitney Huston e ser o contrário da borboleta da física quântica. Não dá nem pra ouvir os próprios passos.

Gravando é também sobre essas frases soltas que a gente ouve na rua “Apareça mais” (de “Visita”), “Tenha cuidado” (de “O sangue”), frases que simulam o acolhimento e a compaixão, mas na verdade são fórmulas vazias da cordialidade entre os pares.

Outros sinais da invasão simbólica da grandiloquente São Paulo: a impossibilidade de sentir saudade (“Entre latinos”), as fantasias com o interior (“Quermesse”), a necessidade de fugir correndo para as montanhas (“A caminho do corpo levitante”), as conversas unilaterais (“Carta para Alcides”), porque você só tem tempo para falar com o namorado enquanto está presa no trânsito, dentro do ônibus com mais dezenas de pessoas que compartilham involuntariamente da sua intimidade. Penso agora que deve ser a mesma sensação de escrever um livro: partilhar sua intimidade com dezenas de pessoas involuntárias. E, de repente, é aí que seu projeto estético, Aline, casa com a minha versão de SP.

A partir dessa relação que estabeleci entre a minha leitura radical e a projeção que eu faço do que seria o projeto do seu livro, vamos a “Este poema foi escrito na cidade de São Paulo” – que, para mim, já começa com um problema estrutural.

Repara: hoje as ruas parecem mais calmas.
Não quietas, veja bem, não nesse sentido: mas
Parece que todos desceram na estação exata.

Impossível!!!!!(veja quantas exclamações)!!!! Enquanto escrevo isso, neste exato momento, os metroviários estão em greve, a cidade está no estado de armagedon para qual os paulistanos, filhos do apocalipse, já nasceram preparados e o Sr. Governador Geraldo Alckmin já mandou avisar que quer que todo mundo vá tomar no cu e vai, ele mesmo, passear por aí de helicóptero, como se fosse um correspondente de guerra. SP é assim: ame-a ou deixe-a, ninguém te quer aqui. Dessa forma, o poema na verdade descreve um ambiente idílico, o último milagre, em que exatamente TODAS as pessoas descem na estação “exata”. Veja bem, não é a estação “correta”, ou “desejada”, é a estação “exata”, de uma alta precisão matemática, desenhada no google maps por uma calculadora científica. Nem o GPS errou: você está onde você deveria estar. Você não se perdeu na cidade e de repente ficou sem lugar pra dormir às 4 da manhã. Não. Você está onde deveria estar. Nem você sabia pra onde ia, mas você chegou, é ali. Ao contrário do adeus terrível de “About”, temos um “olá” amistoso, acolhedor. É a evasão mais completa da realidade e dá a SP algo que ela nunca teve: carinho. (Não, brincadeira, tô exagerando. Não me matem, paulistanos.) Exatidão matemática: daí o teu desejo obsessivo pelas ruas retilíneas (pressinto um desejo de se mudar pra Brasília).

Para você, Aline, matemática é amor. Deduz um dente em “Abertos 24 horas”, faz uma contagem regressiva pra viajar em “Não me fotografe, me beije”, vai adicionando cigarros em “Assombração urbana”, deduz 23 anos de 30 metros quadrados em “A prece”. Toda poesia matemática lembra Trilce, um cálculo infernal, uma lógica profana para tratar os sentimentos. Transformar experiências e sensações em contas impossíveis, em números delirantes como o próprio trilce: mais uma possibilidade poética descoberta. Elevar a poesia à potência zero, admitir que existe algo fora dos limites da aritmética, fora da lógica. Admitir que existe amor.

E tem as homenagens, reais ou imaginadas por mim. Vejo “Quadrilha” em “A queda” (de Hitler? É uma referência ao filme?).

A primeira a atirar-se foi Leandra
Logo depois Sansão e em seguida os gêmeos.

Só que em vez de Maria amar João e sei lá mais quem, é a Leandra e o Sansão e uma fila que se joga de um prédio. O suicídio surreal corta a casa – novamente essa ideia de lar desfeito, de solidão absoluta, de falta de origem, de exílio em si.

Antes, porém, cortaram os fios de eletricidade
Cortaram todos os fios de todos os eletrodomésticos
cortaram os cabelos uns dos outros
desfiaram a colcha de Penélope
romperam a ponta do novelo de Teseu
passaram gilete nos pelos pubianos
e decoraram a biografia de Rimbaud

Os fios de eletricidade (que decapitariam os corpos em queda livre), os fios dos eletrodomésticos (o rompimento da harmonia doméstica) (como o Ian Curtis, pendurado na corda do varal, esperando ser encontrado pela esposa traída e pela filha neném), cortando os cabelos uns dos outros (um ritual de esterilização e impotência, afinal um deles chama Sansão), a gilete (o clássico suicida, como Guerra e Paz), Penélope e Teseu (das aulas de literatura clássica que agora jazem no mais profundo e inacessível do meu cérebro) e decorar Rimbaud como quem precisa fazer um curso introdutório para deixar-se cair do prédio. Deste poema, o mais estranho verso é “a parte mais triste era a volta”, como se fosse um ensaio de queda, ou como (para usar a metáfora que o livro oferece) fosse um vídeo visto de trás para frente, freneticamente, um suicídio ao contrário, “num ritual de Ícaro”.

Ainda no assunto das homenagens, em “Córdoba”

Quando chega a noite, sento em minha cama a observar as intimidades [vizinhas
mas não há ninguém, apenas uma luz amarelada de um abajur do [século XIX.
Imagino que a velha senhora
(por que velha, meu deus? Existem também freiras jovens, joviais)
esteja lendo um dos livros proibidos pela Inquisição.

para mim, é uma celebração do Grupo XIX de teatro, encenando grandes sucessos oitocentistas pelas ruas de SP, fazendo convergir o finissecular e o contemporâneo a ponto de você questionar seu tempo-espaço. Também é uma homenagem que eu faço ao meu vizinho do 9º andar.

Outra homenagem é uma previsão bizarra da morte de Gabriel García Márquez, em “Sobre a versificação”. Não sei o que dizer sobre poetas com habilidades paranormais.
E, finalmente, em “Lentes”

A sua fotografia me olha
com olhos que adivinham
minha imagem

Eu vejo a sua fotografia
e vejo meu reflexo
nos óculos escuros

 uma homenagem a Ana Cristina Cesar e seus óculos escuros estampados para sempre na capa rosa choque da Companhia das Letras (John Hughes?).



 Na verdade, acho que é próprio de fotografias de escritores o fato de nos perseguirem da capa do livro para a vida real. Já escrevi, em outro lugar, sobre os pesadelos que tive com oRoberto Bolaño, magrelo e doente, seus olhos fixos em mim pra onde quer que eu fosse. A fumaça do seu cigarro tomando o ambiente, embaçando os contornos dos livros no stand. Esses são “os olhos que adivinham/minha imagem”, os olhos mais poderosos esses dos nossos ídolos mortos.

Poderia escrever sobre a metáfora sugerida pelo projeto gráfico do livro, uma relação entre a linguagem da Aline e o kitsch, o cinema – que no final é essa vida vivida pelos olhos dos outros, simulada, nunca experimentada. Que no final é nosso desejo de ficar em casa, assistindo The Apartment pela décima quarta vez, em vez de nos jogarmos na rua, conhecermos gente potencialmente idiota com uma tatuagem do Corinthians, descermos na estação errada e talvez de repente ficarmos sozinhos na rua às 4 da manhã sem ter um lugar pra dormir. Esse é o contraste mais importante, a saber, as experiências ativas que os poemas sugerem e a concepção do livro em torno de um ambiente simulado. Mas não vou falar sobre isso porque não sou obrigada (“Eu não sou obrigada”).


A arte de escrever resenhas e prefácios é isso: a arte de discorrer sobre um livro fingindo que foi você quem o escreveu. 

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